Todo mundo conhece alguém, ou já foi esse alguém, que em algum momento decide desativar o Instagram. Não digo nem deletar porque só os mais loucos e impulsivos teriam tamanho audácia, os moderados simplesmente desativam, mantendo a conta num estado quântico porque sabem que é só questão de tempo até retornarem.
“Essa rede tá muito tóxica vou me conectar com a natureza”
Marcelo, 27, três semanas antes de ter seu retorno denunciado por um like na página “memesbrasil”.
“Preciso me concentrar em terminar a tese, vou sumir por um tempo”
Joana, 31, dois dias antes de ser flagrada visualizando os stories da menina com quem trocou duas palavras no banheiro da Fosfobox em 2015
A Meta sabe que você é só um vermezinho obediente viciado na droga que só eles podem oferecer, por isso ela dá a opção de apenas desativar a conta ao invés de excluir. E mesmo que você decida excluir, eles se reservam no direito de deixar você mudar de ideia em até 30 dias. Certamente um número elaborado depois de muita análise de quanto tempo leva para os crackudos resistirem à abstinência.
Eu, que não me considero otário, jamais tive a ousadia de me submeter ao papel de ridículo e fazer todo um escarcéu para anunciar minha saída de uma rede social só para dali a dois dias voltar com o rabo entre as pernas. Não, que isso, eu sou muito mais sagaz, eu vou privadamente colocar um limite no celular para não me deixar passar mais de 1h por dia no Instagram.
Puts, mas só hoje eu precisava responder uma mensagem, vou mudar para 2h por dia rapidinho.
Especificamente na data de hoje, estou entediado portanto coloca logo 4h.
Quando o celular começa a te avisar “Você esgotou seu tempo diário para este aplicativo” e o tempo diário era QUATRO HORAS. É que você começa a ficar um pouco “Nossa quanto tempo né?”. Diante do absoluto e completo fracasso desses aplicativos de controle de horas, decidi tomar a decisão de, na surdina, deletar o Instagram, só para provar que eu podia parar a qualquer momento que quisesse (famosas últimas palavras).
Aqui, é importante pontuar uma coisa. Eu sou, e sempre fui, cronicamente online. Você lembra da sua infância no chat UOL? Meu amor, mal eu aprendi a ler e escrever e já fui logo para o Chat AOL, que muita gente nem faz ideia do que seja. Minha conta no Orkut foi criada em 2004, mesmo ano que a rede foi lançada. Eu não tinha nem 10 anos nessa época. Meu twitter tinha sei lá, 500 mil tweets ou algo assim. Eu cresci na internet e eu cresci com a internet. Geocities, MySpace, Last.Fm, Yahoo Respostas, Habbo Hotel, eu estava lá em todas elas.
Acho que por conta de tantas idas e vindas, de ter experimentado todo tipo de droga virtual que as telas podem fornecer é que sempre fui cético e acreditava que, no final, a gente é só uma presa fácil, impotente diante da força que são os constantes estímulos de dopamina das notificações. Mas recentemente, uma chavinha virou.
Claro, tem o fato de que cada vez mais a “internet” deixa de se apresentar como uma ágora abstrata gerida coletivamente para virar um grande latifúndio de 3 ou 4 indivíduos absolutamente inescrupulosos dispostos a explodir todo o planeta se isso permitir que eles consigam realizar o sonho de ultrapassar o Tio Patinhas em sua fortuna (fun fact: segundo algumas estimativas, o Tio Patinhas seria apenas o 31º homem mais rico do mundo hoje em dia).
Mas para além disso, o maior culpado dessa virada de chavinha me parece ter sido a minha descrença no modelo de negócio. E aqui, veja bem, não é que eu ache que essas plataformas vão falir, infelizmente muito pelo contrário. A questão é que antes era assim: eu deixava o Mark saber tudo da minha vida, ele vendia esse dados para 500 mil empresas e em troca me deixava ver um meme engraçado. Privacidade para mim sempre foi uma ilusão então pelo menos que bom que eu ganhava algo com ter meus dados jogados em um grande bacanal de anúncios virtuais, mesmo que esse algo fosse a esmola de um JPEG pixelado.
Só que o custo estava sendo muito maior. Não basta mais você trocar toda a sua vida passada para dar 10 minutos de risadinha, você precisa também dar em troca toda sua vida presente e toda sua vida futura. Não basta ser lucrativa ou ter uma sólida base de usuários, a rede social precisa maximizar o tempo que você passa com ela custe o que custar. Mas a coisa saiu absolutamente de controle. Chegou num ponto que se você me fala que a Meta tá envenenado a água da cidade para as pessoas ficarem mais tempo no banheiro (e por consequência no celular) eu vou mais acreditar do que desconfiar.
Há alguns anos, era escandalosa a ideia de que os algoritmos favorecessem ideias controversas ou socialmente danosas para gerar mais engajamento. Hoje em dia nem o mais idiota dos idiotas questiona que essa é a realidade. E o pior, que de alguma forma isso é normal. Literalmente é dito “Nosso produto vai te fazer passar ódio porque ódio engaja e seu engajamento vira lucro” e a gente fica “complicado mesmo essa situação…. *reage com carinha brava*”.
Talvez eu não visse isso como um problema quando eu passava 1 hora por dia no máximo. O problema é que a estratégia funciona, e funciona muito. E não só comigo, eu vejo ao redor pessoas ficando com a cabeça completamente destruída porque foram sugadas por um buraco negro de sugestões cuidadosamente selecionadas para prender a atenção delas, mexendo com seus maiores medos e fraquezas para reter sua atenção.
Eu não tinha problema com o modelo de negócio antigo porque era como ir no mercado e comprar um saco de pão francês. A rede social tinha algo que eu queria, eu tinha algo que ela queria, a gente trocava. Poderia não ser a coisa mais ética e certamente não era a troca mais equilibrada do mundo, mas era o que tinha. Agora é como se eu fosse comprar pão francês e o mercado secretamente usasse crack na receita para me fazer comprar mais. Tipo assim existe um limite do quão razoável são táticas de retenção de cliente e para mim está muito claro que esse limite foi ultrapassado há muito tempo.
Mas para além disso, eu percebia que *algo* estava faltando. Uma sensação muito estranha e inespecífica, mas que eu já sentia há muitos anos. E, depois de dois meses sem Instagram, finalmente consegui entender o que era. Meu sentimento de agência.
Em outra palavras, é a sensação de que você é o autor das suas próprias ações — de que está no controle do que faz, decide e escolhe. É quando você sente que "foi você quem fez aquilo", "você quem decidiu", e que seus pensamentos e movimentos têm consequências no mundo.
Hoje, para mim, é muito claro o quão absurdamente fundamental essa sensação é no nosso cérebro primata. E isso é algo que, em 2025, é absolutamente suprimido de todas as formas. Felizmente, pessoas mais inteligentes que eu já estudaram isso e chegaram à mesma conclusão.
A completa algoritmização (?) de tudo que consumimos terceirizou completamente nosso senso de agência. E não adianta falar “Ah mas na época da televisão era igual” porque tem uma diferença crucial. A televisão NECESSARIAMENTE tem que ser de massas, porque precisa agradar um público generalizado. Claro, o perfil de quem está na frente da TV às 14h da tarde de uma quinta-feira não é o mesmo daqueles assistindo às 21h, mas há uma grande limitação no quanto aquele produto pode ser direcionado para o telespectador.
A consequência disso é que você assistia muita coisa a contragosto. Ligar a televisão no Domingo para ver Faustão era meio que admitir uma derrota. mas que no final você optava por tomar essa decisão por falta de coisa melhor. No final, você tinha ciência de que estava vendo aquilo porque você decidiu ver, até porque não teria outro motivo para uma tarefa tão ingrata.
Não é o mesmo com reels. As escolhas do algoritmo são tão específicas para você que, com base em 10~15 sugestões, eu poderia identificar sua conta entre as bilhões de contas existentes. O conteúdo é quase tão específico quanto sua impressão digital. E essa especificidade que suprime o sentimento de agência. Você sente que, se fosse escolher outra coisa, não seria capaz de achar conteúdos tão específicos, ainda mais considerando a vastidão de conteúdos que podemos consumir hoje em dia. Você abdica do seu poder de escolha.
As duas coisas acabam andando juntas: gerar uma preguiça de escolha porque existem 43298175948 de séries na Netflix (e todas parecem ser um lixo) ao mesmo tempo que há uma solução para escolher para você. Não é mais você escolhendo assistir o Luciano Huck humilhando algum pobre na TV para ter o carro arruinado esteticamente, é uma entidade sem rosto. Por mais que isso dê um alívio momentâneo, eu tenho para mim que o custo a longo prazo é muito maior.
E isso não vale só para rede social. Ninguém mais usa o google hoje em dia, não tem por quê. Você só pergunta para o ChatGPT e pronto. Mas de novo, antes você tinha que fazer o trabalho de corno de decidir quais links abrir e quais ignorar. Decidir se a fonte era confiável ou não. Agora você não decide mais nada, só pergunta e o chat responde.
O que eu percebo hoje é que o processo de escolher algo te leva a errar. Ver um filme que não foi escolhido por um algoritmo muitas vezes no final te faz falar “Hm que bosta de filme”. Clicar num link do google enquanto faz uma pesquisa muitas vezes te faz ler um site clickbait cheio de palavras-chaves mas sem conteúdo e você fica “Não é isso que eu to procurando”. O algoritmo resolve isso. E isso é um problema, porque como humanos nós aprendemos basicamente através dos nossos erros. Não errar nunca é eficiente, mas te impede de crescer e evoluir, e aí nada mais fica gratificante. A sensação é terminar o dia exatamente como a mesma pessoa que você começou.
Eu não sou hipócrita de falar para você abrir mão de AI generativa. Tampouco sou ludista e acho que temos que acabar com a tecnologia. Mas enxergo essa abdicação do sentimento de agência como algo com efeitos psicológicos muito negativos e acho que é perfeitamente possível continuar com a vida digital encontrando um meio termo.
Não precisa nem ser “VÁ LER UM LIVRO”. Quer dizer se você quer, vai fundo, mas mesmo tarefas mais básicas podem te fazer sentir de novo esse senso de que está no comando. Eu tenho buscado cada vez mais consumir conteúdo de forma direcionada. Por exemplo, ao invés de simplesmente deixar o algoritmo do Youtube me sugerir novos vídeos, ativamente sigo criadores e busco ver novos vídeos postados por eles, mesmo quando o conteúdo novo não me interessa tanto. Ao invés de deixar a barra de notícias do celular filtrar os temas que me interessa, tenho buscado abrir páginas de portais e jornais específicos para catar as notícias que chamam minha atenção.
Parece uma coisa meio usar telefone de disco na época do smartphone, mas forçar essas pequenas trocas - que realmente são muito pequenas - tem feito uma mudança muito grande na maneira como eu me sinto. E antes que digam “isso toma muito tempo”, desde que deletei o Instagram não me falta mais tempo NENHUM. Várias e várias vezes eu termino de trabalhar, vou para a academia, faço comida, assisto alguma coisa (que eu escolhi) e ainda são 22h da noite. É muito surreal como SOBRA tempo no dia.
Cheguei ao ponto de ir dormir DE TÉDIO porque não tinha mais nada para fazer. Aliás, um dos pontos que o estudo linkado acima observou foi que abdicar do senso de agência era relacionado a uma piora do sono. Talvez não seja o tédio que tenha me feito dormir cedo afinal…
E por falar em tédio, já que estamos no fim do texto e poucos aguentam até aqui: que delícia de sentimento. Se forçar a não ficar vendo algo cuidadosamente selecionado para o seu gosto te levam a constatação de que a maior parte das coisas são muito chatas. Horrível? Muito pelo contrário. Eu não sei há quantos ANOS eu não sentia essa sensação de não ter nada para fazer. É quase como quando você chega de uma festa que tinha som muito alto e o silêncio da sua casa faz seu ouvido fazer “iiiih”, em um desconforto reconfortante.
Enfim, significa que vou ficar para sempre fora do Instagram?
Acho que não.
Estou falando para você deletar seu instagram?
Também não, até porque para quem é solteiro sei como o Instagram é mandatório.
Mas o conceito que passei aqui acho que pode ser adotado de diferentes formas. Pode ser que dê certo para muita gente, eu vire coach, escreva um livro de auto-ajuda de 150 páginas e faça muito dinheiro. Ou pode ser que daqui a 5 anos vou reler isso e morrer de vergonha, mas seja o que for, pelo menos foi algo que eu decidi fazer.